segunda-feira, 12 de maio de 2025

PONTO DE VISTA NARRATIVO - NARRATIVA NA TERCEIRA PESSOA





Ponto de vista em terceira pessoa


O autor narra uma história sobre os personagens e se refere a eles com os pronomes de terceira pessoa "ele/ela".

 

"Era muito cedo, estava frio e havia uma densa névoa abafando a manhã. Ele desceu correndo em direção ao ônibus que já se movimentava devagar. Havia ainda uma boa distância até a parada. Via-se que ele tinha as pernas trôpegas, a inclinação da rua parecia lhe favorecer mais velocidade. De repente ouviu-se o grito desesperado dele "Espere!" . Seus braços atordoados se articulavam no ar dando mais força ao seu pedido. O motorista não o via de onde estava. O ônibus partiu sem ele.

Era o fim para o pobre coitado. Estancou aos pedaços. Os olhos estavam confusos, e os lábios trêmulos. Logo as lágrimas desceram, e o sofrimento já era mais denso que a névoa daquele dia.".

 

Este tipo de narrativa pode ser um NARRADOR ONISCIENTE (onisciente significa “ciência de tudo”), ou seja, o tipo de narrador onisciente representa as narrativas em que o narrador conhece todos os detalhes da história, inclusive pode conhecer os pensamentos e emoções dos personagens.

 

NARRADOR ONISCIENTE - É o narrador mais poderoso, mais completo, mais usado nas histórias e romances e mais empregado na escrita criativa.


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PONTO DE VISTA NARRATIVO - SEGUNDA PESSOA

 

PONTO DE VISTA NARRATIVO

SEGUNDA PESSOA

 

"Você mente uma vez e percebe que acreditaram na sua falácia. Então, você mente de novo, e de novo. E aí, começa a divagar sobre viagens que nunca fez, sobre celebridades que não conhece, mas que jura terem se encontrado um dia, sobre sua falsa fortuna, e blá, blá, blá..."


Ponto de vista é a voz narrativa através da qual você conta uma história.

Ao escrever uma história, você deve decidir quem a contará e para quem.

A história pode ser contada por um personagem envolvido na narrativa ou de uma perspectiva que vê e conhece todos os personagens, mas não é um deles.

 

Ponto de vista de segunda pessoa


O ponto de vista em segunda pessoa é estruturado em torno do pronome "você". Esse processo não é tão comum na literatura. 

"Você mente uma vez e percebe que acreditaram na sua falácia. Então, você mente de novo, e de novo. E aí, começa a divagar sobre viagens que nunca fez, sobre celebridades que não conhece, mas que jura terem se encontrado um dia, sobre sua falsa fortuna, e blá, blá, blá...

A segunda pessoa pode permitir que você atraia seu leitor para a história e faça com que ele se sinta parte da ação porque o narrador está falando diretamente com ele. Escrever em segunda pessoa por qualquer extensão é um desafio e vai expandir suas habilidades de escrita.

Os contos de autoajuda ficam perfeitos na segunda pessoa.  Experimente.


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PONTO DE VISTA NARRATIVO - HISTÓRIA NARRADA PRIMEIRA PESSOA

 

PONTO DE VISTA NARRATIVO

PRIMEIRA PESSOA

 

(Não tive como me safar, então fugi numa noite muito escura com a esquelética lua escondida entre as nuvens do outono. Eu corri a noite inteira pela mata fechada, por trilhas desconhecidas.  Minhas pernas tremiam, minha garganta áspera, o peito arfante me enfraquecia o ânimo.) 


Ponto de vista é a voz narrativa através da qual você conta uma história.

Ao escrever uma história, você deve decidir quem a contará e para quem.

A história pode ser contada por um personagem envolvido na narrativa ou de uma perspectiva que vê e conhece todos os personagens, mas não é um deles.

 

Ponto de vista de primeira pessoa

 

No ponto de vista de primeira pessoa, um dos personagens está narrando a história.

Isso geralmente é revelado pela própria construção da frase "eu" e depende de pronomes de primeira pessoa: 

"Não tive como me safar. Fugi numa noite muito escura com a esquelética lua escondida entre as nuvens do outono. Eu corri a noite inteira pela mata fechada, por trilhas desconhecidas.  Minhas pernas tremiam, minha garganta áspera tinha sede, o peito arfante me enfraquecia o ânimo"

Neste caso, o leitor reconhece que esse personagem está intimamente relacionado à ação da história - seja um personagem principal ou alguém próximo do protagonista.

A narrativa em primeira pessoa pode fornecer intimidade e um olhar mais profundo na mente de um personagem, mas também é limitada pelas habilidades perceptivas do personagem. No entanto, esse ponto de vista narrativo limita muito o relato interior dos personagens, eles narram o que sabem, apenas realidade sobre os passos da história.  Pode ser:

 

Narrador personagem protagonista

Narrador personagem observador

 

Na obra Memórias Póstumas e Brás Cubas, de Machado de Assis, o narrador é personagem protagonista

E, na obra Um Estudo em Vermelho, de Arthur Conan Doyle, o Sr. Watson é o personagem secundário da história, ou seja, é o narrador testemunha:




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A ROUPA NOVA DO REI - Hans Christian Andersen (1837)

 

A ROUPA NOVA DO REI

Hans Christian Andersen (1837)

 


Há muitos e muitos anos atrás, havia um rei tão apaixonado, mas tão apaixonado por roupas novas, que gastava com elas todo o dinheiro que possuía. Pouco se importava com seus soldados, com o teatro ou com os passeios pelos bosques, contanto que pudesse vestir novos trajes. E ele tinha mesmo um para cada hora do dia, tanto que, ao invés de se dizer dele o que se diz de qualquer rei: “O rei está ocupado com seus conselheiros”, por exemplo, dele se dizia sempre a mesma coisa: “0 rei está se vestindo”.

Na cidade em que vivia, a vida era muito alegre; todos os dias chegavam multidões de forasteiros para visitá-la, e, entre eles, certa ocasião, chegaram dois vigaristas. Sabendo do gosto do monarca, e tramando dar nele um golpe, fingiram-se de tecelões, e apresentaram-se no palácio dizendo-se capazes de tecer os tecidos mais maravilhosos do mundo. E não somente as cores e os desenhos de seus tecidos eram magníficos, mas também os trajes que faziam possuíam a qualidade especial de se tornar invisíveis para aqueles que não tivessem as qualidades necessárias para desempenhar suas funções e também para aqueles que fossem muito tolos e presunçosos.

“Devem ser trajes magníficos —pensou o rei. “E se eu vestisse um deles, poderia descobrir todos aqueles que em meu reino carecem das qualidades necessárias para desempenhar seus cargos. E também poderei distinguir os tolos dos inteligentes. “Sim, estou decidido a encomendar um desses trajes para mim!”

Entregou então a um dos tecelões uma grande soma em dinheiro como adiantamento, na expectativa de que assim os dois começassem imediatamente o trabalho. E foi o que aconteceu: depois de receberem uma grande quantidade de seda pura e fio de ouro, material que guardaram em seus alforjes, os dois vigaristas prepararam os teares e fingiram entregar-se ao trabalho de tecer, embora não houvesse um só fio nas lançadeiras.

“Gostaria de saber como vai o trabalho dos tecelões” —pensou um dia o rei. Todavia, temendo ser ele mesmo um tolo, ou alguém incapaz de exercer a função de rei, desistiu de ir pessoalmente e decidiu mandar outra pessoa em seu lugar. Todos os habitantes da cidade conheciam as maravilhosas qualidades do tecido em questão, e todos, também, desejavam saber, por esse meio, se seus vizinhos ou amigos era tolos. “Mandarei meu fiel primeiro ministro visitar os tecelões”— pensou o rei. “Será o mais capacitado para ver o tecido, pois é um homem muito hábil e ninguém cumpre seus deveres melhor do que ele”. E assim o bom e velho primeiro ministro dirigiu-se ao aposento em que os vigaristas trabalhavam nos teares completamente vazios. “Deus me proteja!” —pensou o ancião, e abrindo bem os olhos pensou “Mas eu não vejo nada!”

Os dois vigaristas, então, notando a expressão de espanto no rosto do velho, pedem-lhe que se aproxime e opine acerca do desenho e do colorido do tecido. Mostram-lhe o tear vazio e o pobre ministro, por mais que se esforçasse para ver, não conseguia enxergar coisa alguma, porque não havia nada para ver.

“Deus meu! —pensava. “Serei eu tão tolo assim?” E não querendo que ninguém soubesse de sua tolice e menos ainda que o julgasse incapaz de exercer a função de ministro, imediatamente respondeu: “É muito lindo! Que efeito encantador!!” E fitando o tear vazio através de seus óculos: “0 que mais me agrada são os desenhos e as maravilhosas cores que o compõem. Asseguro-lhes que direi ao rei o quanto gosto de seu trabalho!”

“Ficamos muito honrados em ouvir tais palavras de vossos lábios, senhor ministro” — replicaram os tecelões. E imediatamente começam a verbalmente descrever os detalhes do complicado desenho e das cores que o formavam. 0 ministro ouviu- os com a maior atenção, com a intenção de repetir essas palavras quando estivesse na presença do rei.

Percebendo que seu plano estava dando certo, os dois vigaristas pedem então mais dinheiro, mais seda e mais fio de ouro, para dar prosseguimento a seu trabalho. Porém, assim que recebem o solicitado, guardam-no como antes. Nem um só fio foi colocado no tear, embora eles fingissem continuar trabalhando apressadamente.

Passado algum tempo, o rei envia outro fiel cortesão para verificar o progresso do trabalho dos falsos tecelões e a fim de saber se eles demorariam muito para entregar o tecido. A este segundo enviado aconteceu a mesma coisa que com o primeiro: “Não acha que é uma fazenda maravilhosa?” —perguntaram os vigaristas, mostrando e explicando um desenho imaginário e um colorido não menos fantástico, que ninguém conseguia ver. “Sei que não sou tolo” —pensava o cortesão; “mas se não vejo o tecido, é porque não devo ser capaz de exercer minha função... Melhor pois não dar a perceber esse fato.”

E assim foi, até que o rei convencido de que ele próprio deveria ver o tal tecido enquanto ainda estivesse no tear, pediu que outros mais cortesãos, dentre os quais o primeiro ministro e o outro palaciano que haviam fingido ver o tecido, o acompanhassem em uma visita aos falsos tecelões. Chegando lá, viu que os dois vigaristas com o maior cuidado trabalhavam no tear vazio, e com grande compenetração. “É magnífico!” —exclamaram o primeiro ministro e o palaciano. “Digne-se Vossa Majestade a olhar o desenho. Que cores maravilhosas!” E apontavam para o tear vazio, pois não tinham dúvidas de que as outras pessoas viam o tecido. “Mas o que é isto?” —pensou o rei. “Não estou vendo nada! Isso é terrível! Serei um tolo? Não terei capacidade para ser rei? Certamente não poderia acontecer-me nada pior.” E assim pensando, exclama: “É realmente uma beleza esse tecido!” “E merece minha melhor aprovação.” E manifestava sua aprovação por meio de alguns gestos, enquanto olhava para o tear vazio, pois ninguém poderia supor que ele não estivesse vendo coisa alguma.

Por sua vez, todos os outros cortesãos olhavam e obviamente também não viam nada. Porém, como nenhum queria passar por tolo ou incapaz, todos fizeram coro às palavras de Sua Majestade. “É uma beleza!” --exclamavam. E aconselharam o rei a mandar fazer uma roupa com aquele tecido maravilhoso, e que a estreasse no grande desfile que se iria realizar daí a alguns dias.

Os elogios ao inexistente tecido corriam de boca em boca e toda a cidade estava curiosa e entusiasmada. E o rei condecorou os dois vigaristas com a ordem dos cavaleiros e concedeu-lhes o título de Cavaleiros Tecelões...

Na noite anterior ao desfile, os dois vigaristas, querendo que todos testemunhassem seu grande interesse em terminar a roupa do rei, passam a noite toda trabalhando, à luz de dezesseis velas. E fingem tirar a fazenda do tear, e cortá-la com enormes tesouras e costurá-la com agulhas sem linha de espécie alguma até finalmente dizer: “Já está pronto o traje do rei!!”

0 rei, então, acompanhado por seus mais nobres cortesãos, vai ao atelier dos vigaristas, e um deles, levantando um braço, como se segurasse uma peça de roupa, diz: “Aqui estão suas calças. Este é o colete!!! Veja, Vossa Majestade, aqui está o casaco!! Finalmente, dignai-vos a examinar o manto!! Estas peças pesam tanto quanto uma teia de aranha. Quem as usar mal sentirá o seu peso...”

E embora ninguém visse nada, todos fingiam ver, enquanto ouviam os vigaristas a descrever as roupas, porque todos temiam ser considerados tolos ou incapazes.

“Tirai agora vossas roupas, Majestade --disse um dos falsos tecelões-- e assim poderá experimentar a roupa nova na frente do espelho”. E o rei tirou a roupa que vestia e os impostores fingiram entregar-lhe peça por peça sucessivamente e a ajudá-lo a vestir cada uma delas. “Que bem assenta este traje em Sua Majestade!!!” “Como está elegante!!! Que desenho e que colorido! É uma roupa magnífica!”

“Estou pronto” – disse finalmente o rei, completamente nu. “Acham que esta roupa me assenta bem?” E novamente mirou-se no espelho, a fim de fingir que se admirava vestido com a roupa nova. E os camaristas, que deviam carregar o manto, inclinaram-se fingindo recolhê-lo do chão e logo começaram a andar com as mãos no ar, carregando nada, pois também eles não se atreviam a dizer que não viam coisa alguma. À frente o rei andava orgulhoso e todos os que o assistiam das ruas e das janelas, exclamavam: “Como está bem vestido o rei! Que cauda magnífica! A roupa assenta nele como uma luva!!!” Nunca na verdade a roupa do rei alcançara tanto sucesso!! Até que subitamente uma criança, do meio da multidão gritou: O rei está nu!!!

“Ouçam! Ouçam o que diz esta criança inocente!” --observou o pai a quantos o rodeavam. Imediatamente o povo começou a cochichar entre si. “0 rei está nu! O rei está nu!!” --começou a gritar o povo. E o rei ouvindo, fez um trejeito, pois sabia que aquelas palavras eram a expressão da verdade, mas pensou: “O desfile tem que continuar!!” E, assim, continuou mais impassível que nunca e os camaristas continuaram segurando a sua cauda invisível.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

CRIE PERSONAGENS INESQUECÍVEIS



Inspetor Clouseau

 CRIE PERSONAGENS INESQUECÍVEIS


Quer um protagonista forte e cativante? 

Então comece definindo suas características! 


DÊ A ELE PELO MENOS TRÊS 

CARACTERÍSTICAS DOMINANTES 

E PELO MENOS UMA CARACTERÍSTICA INVERSA:


São traços que conduzirão os feitos de seu protagonista, ou antagonista.


Por exemplo: Seu personagem é CORAJOSO, INTELIGENTE, E  RESPONSÁVEL.


No entanto, personagens muito certinhos nem sempre rendem boas histórias.


PERSONAGENS INCRÍVEIS 

NÃO 

PODEM SER PERFEITOS:


Ele precisa ter um conflito interno, uma fraqueza ou dilema que o tire do prumo: um passado obscuro, um poder que o assusta, um trauma de infância, insegurança, um vício, fanatismo, intolerância, senso de vingança, uma perda nunca esquecida...

Os personagens crescem no decorrer do enredo e de repente se colocam diante de situações que exigem escolhas. Muitas vezes, eles precisam usar de subterfúgios para "resolver" conflitos. 

Então, aquele protagonista CORAJOSO / INTELIGENTE / RESPONSÁVEL - também poderia ser um "JUSTICEIRO".


E aí, como é seu personagem? 


Conta nos comentários que tipo de dilema seu personagem tem.


Veja também: 

PLOT TWIST

A TEORIA DE ICEBERG - HEMINGWAY


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

O COLOCADOR DE PRONOMES - Monteiro Lobato

O COLOCADOR DE PRONOMES

Monteiro Lobato


Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática. Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões, quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas: essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete; e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era homem de brincadeiras. Esgoelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara, e desde aí se transformou no tutu da terra. Toda a gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, que nesse tempo não existia o escurinho dos cinemas. Encontros na igreja, a missa, troca de olhares, diálogos de flores — o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na Rua d’Elba, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o “Acorda, donzela...” sapecado a medo num velho pinho de empréstimo.
Depois, bilhetinho perfumado. Aqui se estrepou. Escrevera nesse bilhetinho apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências: “Anjo adorado! Amo-lhe!...” Para abrir o jogo, bastava esse movimento de peão.
Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamar o autor à sua presença, com disfarce de pretexto:
— Para umas certidõezinhas — explicou.
Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha. Não lhe erravam os pressentimentos. Mal o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:
— A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca — nunca, ouviu? — que contra ela se cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o.
— É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
— Muito bem! — continuou o coronel em tom mais sereno. — Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora...
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça, e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
— ...é casar! — concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos olhos, disse, gaguejante:
— Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!...
Velhacamente, o velho cortou-lhe o fio das expansões:
— Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
— Do Carmo! Vem abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro:
— Laurinha, quer o coronel dizer...
— Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha, dizendo que ama-lhe. Se amasse a ela, deveria dizer amo-te. Dizendo amo-lhe, declara que ama uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher!...
— Oh, coronel...
— ...ou à preta Luzia, cozinheira. Escolha!
O escrevente, vencido, derrubou a cabeça, com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da sua gramática matrimonial:
— Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa — quem fala, e neste caso vassuncê; da segunda pessoa — a quem se fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa — de quem se fala, e neste caso Maria do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!
Não havia fuga possível. O escrevente ergueu os olhos e viu a do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do avental novo ao alcance do maquiavélico pai. Submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:
— Deus vos abençoe, meus filhos!
No mês seguinte, solenemente, o moço casava-se com o encalhe, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor Aldrovando, conspícuo sabedor da língua, que durante cinqüenta anos a fio coçaria na gramática a sua incurável sarna filológica.
Até aos dez anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu a coqueluche em tempo próprio, teve o sarampo da praxe, mais a cachumba e a catapora. Mais tarde, no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções de matar o tempo — empapelamento de moscas e moidelas das respectivas cabecinhas entre duas folhas de papel, coisa de ver o desenho que sai — Aldrovando apalpava com erótica emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o latejar do furúnculo filológico, que o determinaria na vida, para matá-lo afinal...
Deixemo-lo porém evoluir, e tomemo-lo quando nos serve, aos 40 anos, já a descer o morro, arcado ao peso da ciência e combalido de rins. Lá está ele em seu gabinete de trabalho, fossando, à luz dum lampião, os pronomes de Filinto Elísio. Corcovado, magro, seco, óculos de latão no nariz, careca, celibatário impenitente, dez horas de aulas por dia, duzentos mil réis por mês e o rim, volta e meia, a fazer-se lembrado.
Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna. Sabe-os de cor, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro uma seca de Lucena duma esfalfa de Rodrigues Lobo. Digeriu todas as patranhas de Fernão Mendes Pinto. Obstruiu-se da broa encruada de Frei Pantaleão do Aveiro. Na idade em que os rapazes correm atrás das moças, Aldrovando escabichava belchiores na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de maçar. Nunca dormiu entre braços de mulher. A mulher e o amor — mundo, diabo, carne — eram para ele os alfarrábios freiráticos do quinhentismo, em cuja soporosa verborréia espapaçava os instintos lerdos, como porco em lameiro.
Em certa época, viveu três anos acampado em Vieira. Depois vagamundeou, como um Robinson, pelas florestas de Bernardes.
Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o presente. Passarinho, conhecia um só: o rouxinol de Bernardim Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves Dias vinha bicar “pomos de Hespérides” na laranjeira do seu quintal, Aldrovando esfogueteava-se com apóstrofes:
— Salta fora, regionalismo de má sonância!
A língua lusa era-lhe um tabu sagrado, que atingira a perfeição com Frei Luís de Sousa, e daí para cá, salvo lucilações esporádicas, vinha chafurdando no ingranzéu barbaresco.
— A inglesia de hoje — declamava ele — está para a Língua, como o cadáver em putrefação está para o corpo vivo.
E suspirava, condoído dos nossos destinos:
— Povo sem língua!... Não me sorri o futuro de Vera-Cruz...
E não lhe objetassem que a língua é organismo vivo, e que a temos a evoluir na boca do povo.
— Língua? Chama você língua à garabulha bordalenga que estampam periódicos? Cá está um desses galicígrafos. Deletreemo-lo ao acaso: “Teve lugar ontem...” É língua, esta espurcícia negral? Ó meu seráfico Frei Luís, como te conspurcam o divino idioma, estes sarrafaçais da moxinifada! “...no Trianon...” Por que Trianon? Por que este perene barbarizar com alienígenos arrevezos? Tão bem ficava “a Benfica”, ou, se querem neologismo de bom cunho, “o Logratório”. Tarelos é que são, tarelos!
E suspirava, deveras compungido:
— Inútil prosseguir. A folha inteira cacografa-se por este teor. Ai! Onde param as boas letras de antanho? Fez-se peru o níveo cisne. Ninguém atende a lei suma: Horácio! Impera o desprimor, e o mau gosto vige como suprema regra. A gálica intrujice é maré sem vazante. Quando penetro num livreiro, o coração se me confrange ante o pélago de óperas barbarescas que nos vertem cá mercadores da má mote. E é de notar, outrossim, que a elas se vão as preferências do vulgacho. Muito não faz que vi com estes olhos um gentil mancebo preferir uma sordícia de Oitavo Mirbelo (Canhenho duma dama de servir, creio) a — adivinhe a quê, amigo — ...à Carta de Guia do meu divino Francisco Manoel!...
— Mas a evolução...
— Basta! Conheço às sobejas a escolástica da época, a “evolução” darwínica, os vocábulos macacos, pitecofonemas que “evolveram”, perderam o peso e se vestem hoje à moda da França, com vidro no olho. Por amor a Frei Luís, que ali daquela costaneira escandalizado nos ouve, não remanche o amigo na esquipática sesquipedalice.
Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando em duas fases distintas: a estática, em que apenas acumulou ciência; e a dinâmica, em que, transferido em apóstolo, veio a campo com todas as armas, para contrabater o monstro da corrupção.
Abriu campanha com um memorável ofício ao Congresso, pedindo leis repressivas contra os ácaros do idioma:
“Leis, senhores, leis de Drácão, que diques sejam, e fossados, e alcáçares de granito prepostos à defensão do idioma. Mister sendo, a força se restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante a vida tira. Vede, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem...”
Os pronomes, ai! eram a tortura permanente do professor Aldrovando. Doía-lhe como punhalada vê-los por aí, pré ou pospostos contra regras elementares do dizer castiço. E sua representação alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da Pátria à criação dum Santo Ofício gramatical.
Os ignaros congressistas, porém, riram-se do ofício, e grandemente piaram sobre Aldrovando as mais cruéis chalaças:
— Quer que instituamos patíbulo para os maus colocadores de pronomes! Isto seria autocondenar-nos à morte! Tinha graça!
Também lhe foi à pele a imprensa, com pilhérias soezes. Depois, o público. Ninguém alcançara a nobreza do seu gesto, e Aldrovando, com a mortificação na alma, teve que mudar de rumo. Planeou recorrer ao púlpito dos jornais. Para isso mister foi, antes de nada, vencer o seu velho engulho pelos “galicígrafos de papel e graxa”. Transigiu, e desses “pulmões da pública opinião” apostrofou o País com o verbo tonante de Ezequiel. Encheu colunas e colunas de objurgatórias ultraviolentas, escritas no mais estreme vernáculo.
Mas não foi entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis períodos engrenados à moda de Lucena. Ao cabo da aspérrima campanha, viu que pregara em pleno deserto. Leram-no apenas a meia dúzia de Aldrovandos que vegetam sempre em toda parte, como notas rezingüentas da sinfonia universal.
A massa dos leitores, essa permaneceu alheia aos flamívomos pelouros da sua colubrina sem raia. E por fim os “periódicos” fecharam-lhe a porta no nariz, alegando falta de espaço.
— Espaço não há para as sãs idéias — objurgou o enxotado — mas sobeja, e pressuroso, para quanto recomende à podriqueira!... Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia limpar-vos a gafa! — exclamou, profético, sacudindo à soleira da redação o pó das cambaias botinas de elástico.
Tentou em seguida ação mais direta, abrindo consultório gramatical:
— Têm-nos os físicos (queria dizer: médicos), os doutores em leis, os charlatães de toda espécie. Abra-se um para a medicação da grande enferma, a língua. Gratuito, já se vê, que me não move amor de bens terrenos.
Falhou a nova tentativa. Apenas as moscas vagabundas vinham esvoejar em torno da ciência que se oferecia na salinha modesta do apóstolo. Criatura humana, uma só, sequer, ali não veio remendar-se filologicamente.
Ele, todavia, não esmoreceu:
— Experimentemos processo outro, mais suasório.
E anunciou a montagem da “Agência de Colocação de Pronomes e Reparos Estilísticos”. Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço a compor-se com os “afeites” do lídimo vernáculo, fosse lá, que, sem remuneração nenhuma, nele se faria obra limpa e escorreita.
Era boa a idéia, e logo vieram os primeiros originais necessitados de ortopedia, sonetos a consertar pés de versos, ofícios ao Governo pedindo concessões, cartas de amor.
Tais, porém, eram as reformas que nos doentes operava Aldrovando, que os autores não mais reconheciam suas próprias obras. Um dos clientes chegou a reclamar:
— Professor, V. Sa. enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas não que me traduzisse o texto em latim...
Aldrovando ergueu os óculos para a testa:
— E traduzi em latim o tal ingranzéu?
— Em latim ou grego, pois que o não consigo entender...
Aldrovando empertigou-se:
— Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é ali com o alveitar da esquina.
Pouco durou a agência, morta à míngua de clientes. Teimava o povo em permanecer empapado no chafurdeiro da corrupção...
O rosário de insucessos, entretanto, em vez de desalentar, exasperou o apóstolo:
— Hei de influir na minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me à férula, os maraus de pau e corda? Ir-lhes-ei empós, filá-los-ei pela gorja... Salta rumor!
E foi-lhes “empós”. Andou pelas ruas, examinando dísticos e tabuletas com vícios da língua. Descoberta a “asnidade”, ia ter com o proprietário, contra ele desfechando os melhores argumentos catequistas.
Foi assim com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma tabuleta — “Ferra-se cavalos” — escoicinhava a santa gramática.
— Amigo — disse-lhe pachorrentamente Aldrovando — natural a mim me parece que erres, alarve que és. Se erram paredros, nesta época de ouro da corrupção... (o ferreiro pôs de lado o malho e entreabriu a boca). Mas da boa sombra do teu focinho espero que ouvidos me darás. Naquela tábua um dislate existe, que seriamente à língua lusa ofende. Venho pedir-lhe, em nome do asseio gramatical, que o expunjas.
— ? ? ?
— Que reformes a tabuleta, digo.
— Reformar a tabuleta? Uma tabuleta nova, com a licença paga? Está acaso rachada?
— Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem, ali, os dizeres à sã gramaticalidade.
— Macacos me lambam, se estou entendendo o que V. Sa. diz...
— Digo que está a forma verbal com eiva grave. O “ferra-se” tem que cair no plural, pois que a forma é passiva e o sujeito é “cavalos” (o ferreiro abriu o resto da boca). O sujeito sendo “cavalos”, a forma verbal é “ferram-se”: “Ferram-se cavalos”.
— Ah! Começo agora a compreender. Diz V. Sa. que...
— Que “ferra-se cavalos” é um solecismo horrendo, e o certo é “ferram-se cavalos”.
— V. Sa. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele “se” da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: “Serafim ferra cavalos”, ou então “ferra Serafim cavalos”. Para economizar tinta e tábua, abreviaram o meu nome, e ficou como está: “Ferra-Se(rafim) cavalos”. Isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem.
Aldrovando ergueu os olhos para o céu, e suspirou.
— Ferras cavalos e bem merecias que te fizessem eles o mesmo!... Mas não discutamos. Ofereço-te dez mil réis pela admissão dum “m” ali...
— Se V. Sa. paga...
Bem empregado o dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada, perfeitamente de acordo com as boas regras da gramática. Era a primeira vitória obtida, e todas as tardes Aldrovando passava por lá, para gozar-se dela.
Por mal, porém, não durou muito o regalo. Coincidindo a entronização do “m” com maus negócios na oficina, o supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à alteração dos dizeres, e lá raspou o “m” do professor.
A cara que Aldrovando fez quando, no passeio desse dia, deu com a sua vitória borrada! Entrou furioso pela oficina a dentro, e mascava uma apóstrofe de fulminar, quando o ferreiro, às brutas, lhe barrou o passo:
— Chega de caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço e na língua, sou eu. E é ir andando, antes que eu o ferre com um bom par de ferros ingleses!
O mártir da língua meteu a gramática entre as pernas e moscou-se.
— Sancta simplicitas! — ouviram-no murmurar na rua, de rumo à casa, em busca das consolações seráficas de Frei Heitor Pinto.
Chegado que foi ao gabinete de trabalho, caiu de borco sobre as costaneiras venerandas, e não mais conteve as lágrimas. O mundo estava perdido, e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não havia desviá-los do ruim caminho, e ele, já velho, com o rim a rezingar, não se sentia com forças para a continuação da guerra.
— Não hei de acabar, porém, antes de dar a prelo um grande livro, onde compendie a muita ciência que hei acumulado.
E Aldrovando empreendeu a realização de um vastíssimo programa de estudos filológicos. Encabeçaria a série um tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde mais claudicava a gente de Gomorra.
Fê-lo, e foi feliz nesse período de vida em que, alheio ao mundo, todo se entregou, dia e noite, à obra magnífica. Saiu trabuco volumoso, que daria três tomos de 500 páginas cada um, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para a lusitanidade! Todos os casos resolvidos para sempre, todos os homens de boa vontade salvos da gafaria! O ponto fraco do brasileiro falar, resolvido de vez! Maravilhosa coisa...
Pronto o primeiro tomo — Do pronome Se — anunciou a obra pelos jornais, ficando à espera da chusma de editores que viriam disputá-la à sua porta. E por uns dias o apóstolo sonhou as delícias da estrondosa vitória literária, acrescida de gordos proventos pecuniários.
Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autorais, que, generoso que era, cederia por cinqüenta. E cinqüenta contos, para um celibatário como ele, sem família nem vícios, tinham a significação duma grande fortuna. Empatados em empréstimos hipotecários, sempre eram seus quinhentos mil réis por mês de renda, a pingarem pelo resto da vida, na gavetinha onde, até então, nunca entrara pelega maior de duzentos. Servia, servia!... E Aldrovando, contente, esfregava as mãos, de ouvido alerta, preparando frases para receber o editor que vinha vindo...
Que vinha vindo, mas não veio, ai!... As semanas se passaram sem que nenhum representante dessa miserável fauna de judeus surgisse a chatinar o maravilhoso livro.
— Não me vêm a mim? Salta rumor! Pois me vou a eles!
E saiu em via-sacra, a correr todos os editores da cidade. Má gente! Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam o nariz, dizendo: “Não é vendável”; ou: “Por que não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo Governo?”
Aldrovando, com a morte n’alma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se nas últimas resistências:
— Fá-lo-ei imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel. Sei pelejar com todas as armas, e irei até ao fim. Bofe!...
Para lutar, era mister dinheiro, e bem pouco do vilíssimo metal possuía na arca o alquebrado Aldrovando. Não importa! Faria dinheiro, venderia móveis, imitaria Bernardo de Pallissy, e não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso de sua ciência impressa. Editaria, ele mesmo, um por um, todos os volumes da obra salvadora.
Passou esse período de vida alternando revisão de provas com padecimentos renais. Venceu. O livro compôs-se, magnificamente revisto, primoroso na linguagem como não existia igual.
Dedicou-o a Frei Luís de Sousa: “À memória daquele que me sabe as dores — O autor”.
Mas não quis o destino que o já trêmulo Aldrovando colhesse os frutos de sua obra. Filho dum pronome impróprio, a má colocação de outro pronome lhe cortaria o fio da vida.
Muito corretamente havia escrito na dedicatória: “...daquele que me sabe...”, e nem poderia escrever de outro modo um tão conspícuo colocador de pronomes. Maus fados intervieram, porém — até os fados conspiram contra a língua — e, por artimanha do diabo que os rege, empastelou-se na oficina esta frase. Vai ao tipógrafo, e recompõem-na a seu modo: “daquele que sabe-me as dores”... E assim saiu nos milheiros de cópias da avultada edição.
Mas não antecipemos.
Pronta a obra e paga, ia Aldrovando recebê-la, enfim. Que glória! Construíra, finalmente, o pedestal da sua própria imortalidade, ao lado direito dos sumos cultores da língua.
A grande idéia do livro, exposta no capítulo IV — Do método automático de bem colocar os pronomes — era engenhosa aplicação duma regra mirífica por meio da qual até os burros de carroça poderiam zurrar com gramática operária, como o “914” da sintaxe, limpando-a da avariose produzida pelo espiroqueta dos pronomococus.
A excelência dessa regra estava em possuir equivalentes químicos de uso na farmacopéia alopata, de modo que a um bom laboratório fácil lhe seria reduzi-la a ampolas para injeções hipodérmicas, ou a pílulas, pós ou poções para uso interno.
E quem se injetasse ou engolisse uma pílula do PRONOMINOL CANTAGALO curar-se-ia para sempre do vício, colocando os pronomes instintivamente bem, tanto no falar como no escrever. Para algum caso de pronomorréia aguda, evidentemente incurável, haveria o recurso do PRONOMINOL Nº 2, onde entrava a estricnina em dose suficiente para libertar o mundo do infame sujeito.
Que glória! Aldrovando prelibava essas delícias todas, quando lhe entrou pela escada a dentro a primeira carroçada de livros. Dois brutamontes de mangas arregaçadas empilharam-nos pelos cantos, em rumas que lá se iam. Concluso o serviço, um deles pediu:
— Me dá um mata-bicho, patrão!...
Aldrovando severizou o semblante, ao ouvir aquele “me” tão fora dos mancais, e tomando um exemplar da obra ofertou-o ao “doente”:
— Toma lá. O mau bicho que tens no sangue morrerá asinha às mãos deste vermífugo. Recomendo-te a leitura do capítulo sexto.
O carroceiro não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:
— Isto, no “sebo”, sempre renderá cinco tostões. Já serve...
Mal se sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho e deu começo à tarefa de lançar dedicatórias num certo número de exemplares destinados à crítica. Abriu o primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa, quando seus olhos deram com a horrenda cinca: “Daquele que sabe-me as dores”.
— Deus do Céu! Será possível?!
Era possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares da edição, lá estava, no hediondo relevo da dedicatória a Frei Luís de Sousa, o horripilantíssimo “que sabe-me”...
Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto uma estranha marca de dor — dor gramatical, inda não descrita nos livros de patologia — permaneceu imóvel uns momentos.
Depois, empalideceu. Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se nas garras de repentina e violentíssima ânsia. Ergueu os olhos para Frei Luís de Sousa e murmurou:
— Luís! Luís! Lamma sabachtani!
E morreu.
De quê? Não sabemos, nem importa ao caso. O que importa é proclamarmos aos quatro ventos que com Aldrovando morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da colocação dos pronomes.
Paz à sua alma.


(Monteiro Lobato, in O. Pimentel, Antologia de contos – Livraria Cultural Ltda., Rio, 1961

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

O COLAR- GUY DE MAUPASSANT

 Eis um conto curto de altíssimo valor literário. 

A história trata o tema social com ironia, e nos oferece uma enorme surpresa no desfecho.





O COLAR
GUY DE MAUPASSANT

Era uma dessas lindas e encantadoras moças nascidas, como por erro do destino, de uma família de funcionários públicos. Não tinha dote, não contava com esperanças, carecia de meios para se tornar conhecida, compreendida, querida, desposada por um homem rico e distinto. E aceitou casar-se com um simples escriturário do Ministério da Instrução Pública.

Era modesta, não podendo viver no luxo, porém infeliz como uma desclassificada, porque as mulheres simples não têm casta, nem raça. E a beleza, a graça e o encanto suprem as qualidades de berço e de família. Sua delicadeza congênita, seu instinto de elegância, sua maleabilidade e espírito são sua a única hierarquia e tornam as filhas de pobres iguais às senhoras da alta sociedade.

E sofria continuamente, sentindo-se nascida para todas as delicadezas e todos os luxos. Sofria da pobreza de sua casa, da indigência das paredes, dos estragos da mobília, da fealdade dos estofados. Todas essas coisas ínfimas, que outra mulher da sua casta não teria reparado, a torturavam e indignavam. A presença da pequena bretã, que fazia o serviço de sua humilde casa, despertava-lhe mágoas aflitivas e sonhos alvoroçados. Pensava nas antecâmaras mudas, forradas de tecidos orientais, iluminados por altos candelabros de bronze; nos lacaios de calções curtos que dormem em vastas poltronas, entorpecidos pelo calor denso da lareira. Pensava nos espaçosos salões revestidos de seda antiga, nos móveis artísticos cobertos de objetos de decoração inestimáveis e nas salinhas formosas, perfumadas, próprias para a conversa, à tarde, com personalidades notórias e solicitadas, de que todas mulheres cobiçam e desejam captar a atenção.

Quando, ao jantar, sentava-se à mesa redonda, coberta de uma toalha de três dias, ante o seu marido que descobria a sopeira, declarando com expressão satisfeita: “Ah, que boa sopa! Não conheço nada melhor…”, sonhava com jantares delicados, com pratarias reluzentes, com tapetes que povoam as paredes de personagens antigos e pássaros estranhos em meio a florestas fatídicas. Sonhava com manjares deliciosos, servidos em louças maravilhosas, em galanteios sussurrados e ouvidos com um sorriso de esfinge, enquanto as pessoas apreciavam a carne rósea de uma truta ou asas de perdiz.

Não possuía roupas finas, joias, nada. No entanto, era justamente disto de que gostava. Sentia-se feita para estas coisas. O que não daria para ser festejada e invejada, para sentir-se sedutora e cobiçada!

Tinha uma amiga rica, colega de convento, que não queria mais frequentar, tal era a sua aflição quando voltava para casa. E chorava, dias seguidos, de pesar, de tristeza, de desespero, de agonia.

Ora, uma noite, seu marido entrou em casa, com ar glorioso, tendo à mão um grande envelope.

— Olha — disse ele —, tenho aqui uma coisa para você.

Ela rasgou animadamente o papel, de onde tirou um cartão escrito com essas palavras:

“O Ministro da Instrução Pública e a sua senhora rogam ao senhor Loisel e sua senhora dar-lhes a honra de comparecer ao baile no Palácio do Ministério, segunda-feira, 18 de janeiro.”

Em vez de manifestar-se contente, como esperava o seu marido, atirou com desgosto o convite em cima da mesa, murmurando:

— O que quer que eu faça com isto?

— Mas, querida, eu pensei que ficaria contente. Você nunca sai. E é preciso aproveitar a bela ocasião. Tive uma grande dificuldade em obter este convite. Todos querem um. É muito procurado e não é ofertado facilmente aos funcionários. Vai ver todo o mundo oficial.

Ela o fitava com o olhar irritado. Disse-lhe, impaciente:

— O que quer que eu vista para ir à festa?

Ele não pensara nisto. Balbuciou:

— Mas… o vestido com que vai ao teatro. Parece-me bem…

Calou-se, estupefato, atônito, vendo que sua mulher chorava.

Duas grandes lágrimas rolavam lentamente dos olhos aos cantos da boca.

 Gaguejou:

— O que tem? Que que você tem?

Mas, com um esforço violento, ela conseguiu reprimir seu desgosto. Então, respondeu-lhe com voz calma, enxugando as faces úmidas:

— Nada. O que eu não tenho é um vestido. Portanto, não posso ir a essa festa. Dá o teu convite a um amigo cuja mulher esteja mais bem vestida do que eu.

Ele estava muito sentido. Continuou:

— Vejamos, Mathilde. Quanto custará um vestido apropriado, que possa servir ainda em outras circunstâncias, algo que seja simples?

Ela refletiu alguns instantes, fazendo cálculos, e também pensando na quantia que podia pedir sem incorrer numa recusa imediata e ouvir uma exclamação assustada do funcionário.

Por fim, respondeu, hesitante:

— Não sei ao certo. Mas creio que, com quatrocentos francos, eu consigo um vestido.

Ele empalidecera um pouco. Tinha reservado justamente essa quantia para comprar uma espingarda e usufruid dos prazeres da caça no verão seguinte, na planície de Nanterre, com alguns amigos que lá iam para alvejar as cotovias aos domingos.

Entretanto, disse:

— Pois que seja. Eu te dou os quatrocentos francos. Mas trate de conseguir um belo vestido.

*

O dia da festa aproximava-se e a senhora Loisel parecia triste, inquieta, ansiosa. No entanto, o seu vestido estava pronto. O marido disse-lhe uma noite:

— Que tem? Está esquisita há três dias.

— Aborrece-me não ter nenhuma joia, uma gema, nada que me enfeite. Minha aparência será a da perfeita miséria. Talvez fosse melhor que eu não comparecesse à festa.

— Há flores naturais. É de muito bom gosto nesta época. Mediante dez francos, terás duas ou três rosas magníficas.

Ela não se dava por convencida.

— Não… não há nada mais humilhante do que parecer pobre entre senhoras ricas.

— Como você é tola! Vai procurar a tua amiga Forestier e pede a ela que te empreste algumas joias. Você bastante intimidade para pedir-lhe tal coisa.

Ela soltou um grito de alegria:

— É verdade! Eu não me tinha lembrado!

No dia seguinte, dirigiu-se à casa de sua amiga e lhe contou a sua angústia.

A senhora Forestier adiantou-se para um armário de espelho, tirou um grande cofre de joias, trouxe-o, abriu-o e disse à senhora Loisel:

— Escolhe, minha querida.

Viu primeiramente pulseiras, depois um colar de pérolas, depois uma cruz veneziana, de ouro e gemas de admirável perfeição.

Experimentava as joias diante do espelho. Hesitava. Não se decidia se as tirava e as devolvia.

Ainda inquiria:

— Não tem mais nada?

— Certamente. Procure o que lhe pode agradar.

De súbito, descobriu, em uma caixa de cetim preto, um esplêndido colar de diamantes. E o seu coração pôs-se a pulsar num desejo imoderado. Ao tirá-lo, as suas mãos tremiam. Prendeu-o ao pescoço por sobre o vestido. Permaneceu em êxtase diante de si mesma.

Depois perguntou, ansiosa:

— Você pode me emprestar este? Somente este?

— Sim, claro.

Saltou ao pescoço de sua amiga, beijou-a arrebatadoramente, retirando-se com seu tesouro.

*

Chegou o dia da festa. A senhora Loisel foi um sucesso. Era a mais bonita de todas. Elegante, graciosa, sorridente e louca de alegria. Todos os homens olhavam-na, perguntavam o seu nome, procuravam ser-lhe apresentados. Todos os adidos do gabinete queriam valsar com ela. O ministro a notou.

Dançava inebriadamente, ardorosamente, entontecida pelo prazer, não pensando mais em nada, apenas no triunfo de sua beleza, na glória do seu sucesso, em uma espécie de nuvem de felicidade feita de todas essas homenagens, de todas essas admirações, de todos esses desejos despertados, dessa vitória tão completa e tão doce ao coração das mulheres.

Retirou-se cerca das quatro da madrugada. Seu marido, desde a meia-noite, dormia em um salãozinho deserto, em companhia de outros três senhores cuja mulheres muito se divertiam.

Ele atirou-lhe aos ombros as roupas que trouxera para a saída, modestos vestuários de todos os dias, cuja pobreza contrastava com a elegância do vestido de baile. Ela o sentiu e quis fugir, para não ser notada pelas outras senhoras que se envolviam em ricos mantos de peles.

Loisel a retinha:

— Espera. Vais tomar frio lá fora. Vou chamar um carro.

Mas ela não o atendia e descia rapidamente a escada. Quando chegaram à rua, não conseguiram achar nenhum carro. Puseram-se a procurar, chamando os cocheiros que passavam ao longe.

Desciam em direção ao Sena, desesperados, tiritantes de frio. Enfim, depararam-se, no cais, com um desses cupês noturnos que só são vistos em Paris depois do cair da noite, como se à luz do dia tivessem vergonha de sua miséria.

Conduziu-os até a porta, na rua dos Mártires. Subiram tristemente para casa. Estava tudo acabado para ela. E, quanto a ele, pensava na hora que devia chegar à repartição.

Despiu as roupas que lhe envolviam o ombro, diante do espelho, a fim de contemplar-se mais uma vez em sua glória. Mas, subitamente, soltou um grito. O colar já não mais estava ao redor de seu pescoço.

Seu marido, já quase despido, perguntou:

— O que houve?

Voltou-se para ele, como louca:

— Não… não tenho mais o colar da senhora Forestier.

Ele ergueu-se, apavorado:

— O quê? Como? Não é possível!

E começaram a procurar nas dobras do vestido, nas dobras da capa, nos bolsos, em toda parte. Não o encontraram.

Ele perguntava:

— Estás certa que ainda o trazia ao sair do baile?

— Sim. Toquei nele no saguão do Ministério.

— Mas se você o tivesse perdido na rua, nós o teríamos ouvido cair. Deve ter ficado no carro.

— Sim, é provável. Guardou o número do cupê?

— Não. E você não viu?

— Não.

Contemplaram-se aterrorizados. Finalmente, Loisel vestiu-se de novo.

— Vou — disse ele — percorrer todo o trajeto que fizemos pé a ver se consigo achá-lo.

E saiu. Ela permaneceu nos seus trajes de baile, sem forças para deitar-se, aniquilada numa cadeira, sem ideias.

Seu marido regressou às sete. Não tinha achado nada.

Foi, então, à delegacia de polícia, aos jornais para anunciar uma recompensa às companhias de carro de praça, por toda parte, enfim, aonde uma suspeita de esperança o levava.

Ela esperou o dia inteiro, no mesmo estado de pavor, ante esse irreparável desastre.

Loisel voltou à noite, o rosto cavado, lívido. Não havia descoberto nada.

— É preciso escrever à sua amiga que quebrou o fecho do colar e que mandou consertá-lo. Isto nos dará tempo para pensarmos no que faremos.

Ela escreveu o que ele ditou.

*

Ao cabo de uma semana, tinham perdido toda esperança.

E Loisel, envelhecido de cinco anos, declarou:

— É preciso tomar nossas medidas para substituir a joia.

Tomaram, no dia seguinte, o estojo do colar e encaminharam-se ao joalheiro, cujo nome gravava-se na tampa.

Percorreu seus livros:

— Não fui eu, minha senhora, quem vendeu essa joia. Certamente forneci apenas a caixa.

Então, foram de joalheiro em joalheiro em busca de um adereço idêntico ao outro, consultando suas lembranças, doentes ambos de desgosto e ansiedade.

Encontraram, numa loja de Palais-Royal, um colar de diamantes que lhes pareceu em tudo semelhante ao que procuravam. Valia quarenta mil francos. Faziam por trinta e seis mil.

Pediram, pois, ao joalheiro que não o vendessem antes de três dias. E acordaram que o colar seria comprado de volta por trinta e quatro mil, caso o primeiro fosse achado antes do final de fevereiro.

Loisel possuía dezoito mil francos que seu pai lhe deixara. Obteria o restante por empréstimo.

Pediu mil francos a um, quinhentos a outros, cinco luíses aqui, três ali, assinou promissórias, assumiu compromissos arruinadores, negociou com agiotas, com todas as espécies de penhoristas. Comprometeu todo o fim de sua existência, arriscou a sua assinatura sem mesmo cogitar se podia honrá-la e, amedrontado pelas preocupações do futuro, pela miséria negra que ia abater-se sobre ele, pela perspectiva de todas as privações físicas e de todas as torturas morais. Foi buscar o novo colar, depositando no balcão do comerciante trinta e seis mil francos.

Quando a senhora Loisel foi restituir o adereço à senhora Forestier, ela lhe disse, num tom irritado:

— Devia tê-lo me devolvido com maior antecedência, pois eu poderia precisar dele.

Ela não abriu o estojo, algo que sua amiga temia. Se tivesse percebido a substituição, o que pensaria? Não a tomaria por uma ladra?

*

A senhora Loisel conheceu a vida horrível dos necessitados. Aliás, tomou uma resolução, de estalo, heroicamente. Era necessário satisfazer esta dívida medonha. Pagaria. Despediram a criada. Mudaram de residência. Alugaram, sob um telhado, um sótão.

Ela conheceu os pesados serviços domésticos, as odiosas obrigações da cozinha. Lavou as louças, estragando as unhas rosadas nos recipientes gordurosos e no fundo das panelas. Ensaboou as roupas sujas, as camisas e os esfregões da cozinha, que punha a secar numa corda. Desceu à rua, a cada manhã, o lixo, e carregou água, detendo-se em cada degrau para respirar. E, vestida como uma plebeia, foi à venda, ao açougue, a cesta debaixo do braço, regateando, injuriada, defendendo soldo por soldo seu mísero dinheiro.

Era preciso pagar, todos os meses, notas promissórias e renovar outras. Obter novos prazos.

No fim das tardes, o marido fazia a escrituração contábil de um comerciante e, não raro, às noites, fazia cópia de cinco vinténs por página.

E essa vida prolongou-se por um espaço de dez anos.

Ao cabo desse período, tudo fora restituído, tudo, com o prêmio da usura e a importância dos juros acumulados.

A senhora Loisel parecia velha, agora. Tinha-se tornado a mulher forte, intratável e rude das casas pobres. Mal penteada, as saias arregaçadas e as mãos avermelhadas, exprimia-se em altas vozes, lavava abundantemente os assoalhos. Mas, por vezes, durante as horas ausentes do marido, sentava-se perto da janela e recordava-se daquela noite de outrora, daquele baile onde tinha sido tão bela e tão festejada.

O que teria acontecido se o colar não se tivesse perdido? Quem sabe? Como a vida é singular, notável! Como é preciso tão pouco para alguém arruinar-se ou salvar-se.

*

Ora, num domingo, quando ela saiu para uma caminhada nos Champs-Elysées, a fim de descansar dos labores da semana, divisou subitamente uma mulher que passeava com uma criança. Era a senhora Forestier, sempre jovem, sempre bela, sempre sedutora.

A senhora Loisel comoveu-se. Falaria com ela? Sim, por certo. E agora que tinha saldado os compromissos, contaria tudo a ela. Por que não?

Aproximou-se.

— Bom dia, Jeanne.

Como a outra não a reconhecesse prontamente, e pasmasse ser tão familiarizada com essa mulher do povo, balbuciou:

— Mas… minha senhora! Não sei… a senhora, certamente, está enganada.

— Não! Sou eu, Mathilde Loisel.

Sua amiga soltou um grito:

— Oh, minha pobre Mathilde, como estás mudada!

— Sim, passei dias de aflição, desde o nosso último encontro.  Sofri muitas misérias… e isso por sua causa!

— Por minha causa?  Como assim?

— Lembra daquele colar de diamantes que me emprestou para o baile no Ministério?

— Sim. E então?

— Pois eu o perdi.

— Como, se você me devolveu o colar?

— Eu te devolvi um outro perfeitamente idêntico. E o pagamos ao longo de dez anos. Compreende que isto não era fácil, a nós, que não temos nada… Enfim, tudo acabou e estou extremamente satisfeita.

A senhora Forestier parara.

— Então, você ter comprado um colar de diamantes para substituir o meu?

— É verdade. Não percebeu nada, não? Era absolutamente igual.

E sorria num júbilo orgulhoso e inocente.

A senhora Forestier, comovidíssima, tomou-lhe ambas as mãos:

— Oh, minha pobre Mathilde! Mas o meu colar era falso. Valia no máximo quinhentos francos!

PONTO DE VISTA NARRATIVO - NARRATIVA NA TERCEIRA PESSOA

Ponto de vista em terceira pessoa O autor narra uma história sobre os personagens e se refere a eles com os pronomes de terceira pessoa ...