Rubem Braga - Cronista e jornalista brasileiro - (1913-1990). Há muito que se ler de Rubem Braga, procure outros textos deste excelente escritor, e saiba mais sobre ele:
ALGUMAS CRÔNICAS DE RUBEM BRAGA
Leia o excelente texto do autor, e depois crie a sua história baseada na premissa desta crônica. Aqui ele fala da primeira mulher do Nunes, mas você vai falar sobre outro tema, algo muito desejado (um carro, uma mansão, um barco, uma fazenda, uma mulher difícil, um cavalo puro-sangue, uma Harley, um pretendente que não nota sua presença, uma joia).
A primeira mulher do Nunes
Rubem Braga
Hoje, pela volta do
meio-dia, fui tomar um táxi naquele ponto da Praça Serzedelo Correia, em
Copacabana. Quando me aproximava do ponto notei uma senhora que estava sentada
em um banco, voltada para o jardim; nas extremidades do banco estavam sentados
dois choferes, mas voltados em posição contraria, de frente para o restaurante
da esquina. Enquanto caminhava em direção a um carro, reparei, de relance, na
senhora. Era bonita e tinha ar de estrangeira; vestia-se com muita
simplicidade, mas seu vestido era de um linho bom e as sandálias cor de carne
me pareceram finas. De longe podia parecer amiga de um dos motoristas; de
perto, apesar da simplicidade de seu vestido, sentia-se que nada tinha a ver
com nenhum dos dois. Só o fato de ter sentado naquele banco já parecia indicar
tratar-se de uma estrangeira, e não sei por que me veio a idéia de que era uma
senhora que nunca viveu no Rio, talvez estivesse em seu primeiro dia de Rio de
Janeiro, entretida em ver as árvores, o movimento da praça, as crianças que
brincavam, as babás que empurravam carrinhos. Pode parecer exagero que eu tenha
sentido isso tudo de relance, mas a impressão que tive é que ela tinha a pele e
cabelos muito bem tratados para não ser uma senhora rica ou pelo menos de certa
posição, deu-me a impressão de estar fruindo um certo prazer em estar ali,
naquele ambiente popular, olhando as pessoas com um ar simpático e vagamente
divertido; foi o que me pareceu no rápido instante em que nossos olhares se
encontraram.
Como o primeiro chofer da
fila alegasse que preferia um passageiro para o centro, pois estava na hora de
seu almoço, e os dois carros seguintes não tivessem nenhum chofer aparente,
caminhei um pouco para tomar o que estava em quarto lugar. Tive a impressão de
que a senhora se voltara para me olhar. Quando tomei o carro e fiquei novamente
de frente para ela, e enquanto eu murmurava para o chofer o meu rumo – Ipanema
– notei que ela desviava o olhar; o carro andara apenas alguns metros e, tomado
de um pressentimento, eu disse ao chofer que parasse um instante. Ele obedeceu.
Olhei para a senhora, mas ela havia voltado completamente a cabeça. Mandei
tocar, mas enquanto o velho táxi rolava lentamente ao longo da praia eu fui
possuído pela certeza súbita e insistente de que acabara de ver a primeira
mulher do Nunes.
– Você precisa conhecer a
primeira mulher do Nunes – me disse uma vez um amigo.
– Você precisa conhecer a
primeira mulher do Nunes – me disse outra vez outro amigo.
Isso aconteceu há alguns
anos, em São Paulo, durante os poucos meses em que trabalhei com o Nunes. Eu
conhecera sua segunda mulher, uma morena bonitinha, suave, quieta – pois ele me
convidara duas vezes a jantar em sua casa. Nunca me falara de sua primeira
mulher, nem sequer de seu primeiro casamento. O Nunes era pessoa de certo
destaque em sua profissão e afinal de contas um homem agradável, embora não
brilhante; notei, entretanto, que sempre que alguém me falava dele era
inevitável uma referência à sua primeira mulher.
Um casal meu amigo, que
costumava passar os fins de semana em uma fazenda, convidou-me certa vez a ir
com eles e mais um pequeno grupo. Aceitei, mas no sábado fui obrigado a
telefonar dizendo que não podia ir. Segunda-feira, o amigo que me convidara me
disse:
– Foi pena você não ir.
Pegamos um tempo ótimo e o grupo estava divertido. Quem perguntou muito por
você foi a Marisa.
– Quem?
– A primeira mulher do
Nunes.
– Mas eu não conheço…
-Sei, mas eu havia dito a
ela que você ia. Ela estava muito interessada em conhecer você.
A essa altura eu já sabia
várias coisas a respeito da primeira mulher do Nunes; que era linda,
inteligente, muito interessante, um pouco estranha, judia italiana, rica, tinha
cabelos castanho-claros e olhos verdes e uma pele maravilhosa – “parece que
está sempre fresquinha, saindo do banho”, segundo a descrição que eu ouvira.
Quando dei de mim eu estava,
de maneira mais ingênua, mais tola, mais veemente, apaixonado pela primeira
mulher do Nunes. Devo dizer que nessa ocasião eu emergia de um caso sentimental
arrasador – um caso que mais de uma vez chegou ao drama e beirou a tragédia e
em que eu mesmo, provavelmente, mais de uma vez, passei os limites do ridículo.
Eu vivia sentimentalmente uma hora parda, vazia, feita de tédio e remorso; a
lembrança da história que passara me doía um pouco e me amargava muito. Além
disso minha situação não era boa; alguns amigos achavam – e um teve a franqueza
de me dizer isso, quando bêbado – que eu estava decadente em minha profissão.
Outros diziam que eu estava bebendo demais. Enfim, tempos ruins, de moral baixa
e ainda por cima de pouco dinheiro e pequenas dívidas mortificantes.
Naturalmente eu me distraía com uma ou outra historieta de amor, mas saía de
cada uma ainda mais entediado. A imagem da primeira mulher do Nunes começou a
aparecer-me como a última esperança, a única estrela a brilhar na minha frente.
Esse sentimento era mais ou menos inconsciente, mas tomei consciência aguda
dele quando soube que ela ganhara uma bolsa esplêndida para passar seis meses
nos Estados Unidos. Senti-me como que roubado, traído pelo governo
norte-americano. Mas a notícia veio com um convite – para o jantar de despedida
da primeira mulher do Nunes.
Isso aconteceu há quatro ou
cinco anos. Mudei-me de São Paulo, fiz algumas viagens, resolvi parar mesmo no
Rio – e naturalmente me aconteceram coisas. Nunca mais vi o Nunes. Aliás, nos
últimos tempos de nossas relações, eu me distanciara dele por um absurdo
constrangimento, o pudor pueril do que ele pudesse pensar no dia em que
soubesse que entre mim e a sua primeira mulher… Na realidade nunca houve nada
entre nós dois; nunca sequer nos avistamos. Uma banal gripe me impediu de ir ao
jantar de despedida; depois eu soube que sua bolsa fora prorrogada, depois ouvi
alguém dizer que a encontrara em Paris – enfim, a primeira mulher do Nunes
ficou sendo um mito, uma estrela perdida para sempre em remotos horizontes e
que jamais cheguei a avistar.
Talvez fosse mesmo ela que
estivesse pousada hoje, pelo meio-dia, na Praça Serzedelo Correia, simples,
linda e tranquila. Assim era a imagem que eu fazia dela; e tive a impressão de
que seu rápido olhar vagamente cordial e vagamente irônico tentava me dizer
alguma coisa, talvez contivesse uma espantosa e cruel mensagem: “eu sei quem é
você; eu sou Marisa, a primeira mulher do Nunes; mas nosso destino é não nos
conhecermos jamais…”
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